retratos

A terra continua a ser redonda, alguém me diz. Muito embora tenhas morrido há cinco anos e uma hora. Ao meu lado, o retrato de uma mulher jovem envelhece queimada pelo sol que invade este posto de combate. Nunca tinha reparado em como pode a luz envelhecer um rosto retratado. Encontrei-o no sótão. – Um estudo, diz o meu irmão. A mulher, não mulher jovem, só rapariga, é um estudo dimensionalmente reprovável. A mão esquerda toca a direita. Desproporcional. Como o monstro que se recolhe e se revela em cada um de nós. Talvez o meu irmão estivesse certo e a mão seja apenas o relance mais real dessa realidade silenciosa que a todos consome. Noutro, à minha frente, um homem de olhos fechados é pintado de perfil – outro estudo – a mão esquerda vertiginosamente grande assim como os pés apoiados na trave de madeira de um banco. Tem as costas rígidas, o peito perfeitamente simétrico e estou certa que o rosto, por ter fechados os olhos, não envelhecerá. Não gosto de pintura e não tenho especial devoção por pintores, facto para o qual a minha infância terá contribuído. Mas gosto, pelo erro, de retratos-estudo. Recordam-me um livro. Duplamente. Um livro abstracto em que nas falhas podemos imaginar o trajecto dos erros que o passado imprime na mão que, ao tentar chegar ao perfeito, derrapa. Como a verdade. Em segundo plano, eu própria e o meu primeiro livro. Vermelho como as mãos da professora primária e com o sugestivo título “foge do erro”. Sem metáfora foi, naturalmente, o primeiro que rasguei.
“Foge do erro” é uma voz estilhaçada que nasceu com três rins, que se viu necessariamente obrigada, a ver livre de dois e que, imagino, viva saudavelmente os seus cabelos brancos, agora, com um solitário rim. Havia algo de solitário no rosto dessa mulher que odiei. Um cheiro a suor e a um esforço que previam o futuro macilento de quem passa, todos os dias, o cartão pelas máquinas para seguir viagem. Não sei quantos ensinou a ler mas eu, eu sempre me meti à frente do erro.
Ontem refiz esta casa. Faço-o, quase todos os anos, vinte e quatro horas antes da tua morte. É espantosa a quantidade de papel que um louco pode suster em gavetas que já não abrem. Esta casa sou eu e eu sou um estudo envelhecido pelo sol. O mesmo seria dizer que me fazes falta, mas seria errado. A terra continua redonda e a girar segundo me anunciam. As portas continuam destituídas da sua funcionalidade e os vidros das janelas partidos. As flores de inverno não abandonaram o meu tecto. Há um jardim de Novembro suspenso sobre o meu corpo em cada quarto que durmo. Nunca foste um erro. Uma improbabilidade não é um erro, mas em boa verdade, mesmo que o tivesses sido eu não saberia dizê-lo. Nunca haverá retratos meus. E nenhum livro meu terá vermelha capa.