miopia – I

Sei de um atentado em Londres com uma semana de atraso, das trampas do Trump com uma regularidade ainda mais esparsa e, mentiria terrivelmente, se dissesse que me mantenho a par da política nacional. Sou míope. Soube-o perfeitamente quando só me chegou a notícia do onze de Setembro passados quatro dias; encontrava-me eu, adolescentíssima, sentada num banco de jardim em Serralves quando uma rapariga, com nome de santa e conduta pouco casta, confessou os pesadelos que tivera ao imaginar aquela pobre gente atirar-se de janelas. Namorava, a dita, com um padre cujo apelido – e não alcunha – era «Cabeçadas». Convicta de que quando Lisboa de novo tremer sabê-lo-ei atrasadamente, observo as três ruas que fazem deste sótão, encruzilhada.

Alfredo, cigano-mor voltou a sua carrinha; duas mulheres de longas saias e de ancas à quarto crescente improvisam feijoada; todos os filhos casaram e continuam a temer sapos. Tiveram por uns anos paredes em casa abandonada no cimo da rua que, sem telhado, era mansão de veraneio, fizeram crescer salgueiros de longuíssimos cabelos que escondiam o som das espingardas aquando das zaragatas familiares. Um dos seus vizinhos, não cigano e dono de um admirável jardim amuralhado, continua a recolher cães e gatos – mais de metade da reforma, diz-me. Que alimentar tão farta prol não será de fácil contabilidade. O velho de chapéu e olhos arregalados que ninguém conhece ainda vive. O homem de quem nenhuma viva-alma sabe, crê a todos conhecer. Tomamos um café uma vez. Má de caras podia conhecê-lo e não me recordar porém cinco minutos bastaram para se fazer saber que nem eu o conhecia nem ele a mim. Em boa verdade não conhecíamos ninguém. Ainda esta vivo – penso quando ao avistá-lo a curta distância troco de passeio.

Olhos de pombo. Ou de gaivota, sim de gaivota, daquelas que se atiram contra tubos de queda ou clarabóias. Excessivamente trágico. Imagino que tenha casa, talvez televisão, algo que à noite lhe recorde mais rostos do que os anónimos da cidade. Compreendo. Gente que não se conhece e se vê a vida inteira através do écran. Acontece-me com o Cavaco e com o Júlio Isidro. Da mesma forma como, até ao fim da infância, chamava àquele homem de óculos redondos abaixado junto a um porco, tio João. Até ao dia em que meu pai me revelou o triste facto de, o tio João, não sendo português e estando há muito morto, ser, na realidade, o Lennon, que ele achou graça em colocar no álbum de fotografias da família, juntamente com a Marilyn.

Fazendo-me saber que sim, que a miopia, de que ambos padecemos, não é mal feitura ocular antes uma forma selectiva de olhar.

Deixe um comentário