Portugal

Hemisfério Norte. Dois mil e dezassete.

É de perdas a língua remendada desta pátria de braços, pernas, dedos decepados, corações aspergidos à canina piedade pela fome dos vadios. Na esquina de uma rua um tísico pós-moderno senta-se no bocado de chão onde alberga sete cachorros. Ao lado um papelão avisa: «ajude a alimentar esta família». Passam senhoras ainda do tempo da confeitaria do Bolhão e passeiam os dedos pelo focinho dos bichos. Numa lata vazia deixam cair o som de moedas para os pequeninos. Uma rapariga faz de anjo azul em Santa Catarina, aos seus pés uma ventoinha lança bolas de sabão. Mexe-se ao ouvir a moeda a cair no cesto. Olha-te, sorri-te, manda-te um beijo que rola pela palma da sua mão até o teu rosto e pisca-te o olho direito.

Há música e o velho do chapéu que se encostava numa das esquinas há muito que deverá ter morrido. Estendia o chapéu em troco de comida. Sem sorte. Sem saudade. Que sem ser mais portuguesa é um fechar de boca que prende contra os dentes a tristeza de não mais se poder dizer «boa tarde». O homem da concertina e do cão cego mudou-se da porta da loja dos brinquedos por ser agora frutaria de fraca caridade.

Entre o asfalto, a calçada granítica e o perigo de um acidente, gentes vão dando a notícia de outras gentes; já não mais gentes: antes mortos. Velhos. Novos. Que no norte mais a norte desta língua que esta pátria perde agradece-se à morte o haver ainda jardins onde se possa roubar a amargura em pétalas. Como aquelas que nos caiam sobre o rosto na primeira noite em que ao jantar nem uma nódoa tingiu de fartura a mesa.

Perguntem-me pelas gentes da minha terra e contar-vos-ei dos rostos-cascata, rostos-pedreira, mãos de aço. De dentes como correntes, latidos de cães trocados por silabas. Do sussurro que, à noite, não teme a vida ao escavar a própria cova. Perde a pátria a língua. E, enquanto a perde, homens e mulheres recriam novas formas de fazer mira com as mãos; ao cultivarem, corpo a fora, campos minados, a derradeira verdade onde músicas e flores servem somente à surpresa da explosão.

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