o escritor enquanto cão-guia

Grassa, em lusas terras, já há algum tempo, o paradigma do escritor como «cão-guia». O leitor ou leitora, pitosga ou mesmo ceguinho deverá ser levado pela mão do escritor que ao redigir a sua obra deve, em simultâneo, explicá-la. Cabendo ao criador não apenas criar mas ser o decifrador da sua própria criação enquanto a mesma é «consumida». A literatura para ser rentável – dizem alguns, não pode ser «difícil». Valha-nos Deus que um leitor tropece numa palavra desconhecida ou se veja obrigado a desbravar um parágrafo, qual selva, antes de chegar a sua clareira e se deixar à contemplação da beleza. Aliás, o que sabe o leitor da beleza? Da arte? Enfim, do que é a própria literatura. Pior: mas o que é e não é literatura? – Questionam outros por aí. É a alienação total. O escritor vê a sua condição rebaixada à de «cão-guia» e o leitor, completamente infantilizado, à de imbecil. Eu não quero ler o livro de um escritor que ao fim de cada parágrafo se explica a si próprio e quase expõe os motivos pelos quais escreveu o parágrafo anterior. Essa espécie de criação masturbatória em nada dignifica a literatura.

O escritor não se explica. O escritor não precisa de se explicar e muito menos tem o dever de andar com o leitor de mão dada ou ao colo. Cabe ao escritor escrever com arte e cabe ao leitor seguir o escritor, perseguir a escrita, caçar o significado de uma boa narrativa ou poema, enfim: o prazer do descobrimento que a literatura proporciona. Quando se nega isso ao leitor, pergunto-me: para quê ler?

Da crueldade

Cruel. Chamam-me. Que talvez seja de mim a crueldade das costas que se viram, das mãos que se fecham ou da boca que se cala. Sou, de veias, vidro partido, e do meu sangue apenas posso dizer «somente sangue» enquanto lavo o que me mancha. Sem nódoa sou corpo inteiro, cabelo castanho escuro, e um espelho onde talvez veja passar a minha própria sombra. Sei do mundo o que dele vi: que nunca foi de mim, o desvio. Recta, sigo o choro de velhos; as asas partidas das gaivotas; os gatos atropelados e de olho caído sobre o asfalto; a terra e o único cão que levei ao colo na tarde em que as nuvens subiram desde o fundo do Mondego só para dançarem sobre as nossas cabeças. Sou da água como do chão e quando me pedem lume ofereço névoa por ser dela o princípio da chama. De onde venho ninguém mais virá, e talvez seja apenas isso que haja para dizer, enquanto ouço «cruel» e sorrio. Por saber de todas as vezes em que é a crueldade é chamada no lugar dos pulsos que, por lhes correr o vidro, se abrem e deixam cair sobre a terra os grilhões que um beijo planeou. Sou cruel, o mesmo é dizer que sou do vidro que corta e que me abre portas e janelas na casa do meu corpo de onde escrevo estas linhas.

Portugal

Hemisfério Norte. Dois mil e dezassete.

É de perdas a língua remendada desta pátria de braços, pernas, dedos decepados, corações aspergidos à canina piedade pela fome dos vadios. Na esquina de uma rua um tísico pós-moderno senta-se no bocado de chão onde alberga sete cachorros. Ao lado um papelão avisa: «ajude a alimentar esta família». Passam senhoras ainda do tempo da confeitaria do Bolhão e passeiam os dedos pelo focinho dos bichos. Numa lata vazia deixam cair o som de moedas para os pequeninos. Uma rapariga faz de anjo azul em Santa Catarina, aos seus pés uma ventoinha lança bolas de sabão. Mexe-se ao ouvir a moeda a cair no cesto. Olha-te, sorri-te, manda-te um beijo que rola pela palma da sua mão até o teu rosto e pisca-te o olho direito.

Há música e o velho do chapéu que se encostava numa das esquinas há muito que deverá ter morrido. Estendia o chapéu em troco de comida. Sem sorte. Sem saudade. Que sem ser mais portuguesa é um fechar de boca que prende contra os dentes a tristeza de não mais se poder dizer «boa tarde». O homem da concertina e do cão cego mudou-se da porta da loja dos brinquedos por ser agora frutaria de fraca caridade.

Entre o asfalto, a calçada granítica e o perigo de um acidente, gentes vão dando a notícia de outras gentes; já não mais gentes: antes mortos. Velhos. Novos. Que no norte mais a norte desta língua que esta pátria perde agradece-se à morte o haver ainda jardins onde se possa roubar a amargura em pétalas. Como aquelas que nos caiam sobre o rosto na primeira noite em que ao jantar nem uma nódoa tingiu de fartura a mesa.

Perguntem-me pelas gentes da minha terra e contar-vos-ei dos rostos-cascata, rostos-pedreira, mãos de aço. De dentes como correntes, latidos de cães trocados por silabas. Do sussurro que, à noite, não teme a vida ao escavar a própria cova. Perde a pátria a língua. E, enquanto a perde, homens e mulheres recriam novas formas de fazer mira com as mãos; ao cultivarem, corpo a fora, campos minados, a derradeira verdade onde músicas e flores servem somente à surpresa da explosão.

miopia – I

Sei de um atentado em Londres com uma semana de atraso, das trampas do Trump com uma regularidade ainda mais esparsa e, mentiria terrivelmente, se dissesse que me mantenho a par da política nacional. Sou míope. Soube-o perfeitamente quando só me chegou a notícia do onze de Setembro passados quatro dias; encontrava-me eu, adolescentíssima, sentada num banco de jardim em Serralves quando uma rapariga, com nome de santa e conduta pouco casta, confessou os pesadelos que tivera ao imaginar aquela pobre gente atirar-se de janelas. Namorava, a dita, com um padre cujo apelido – e não alcunha – era «Cabeçadas». Convicta de que quando Lisboa de novo tremer sabê-lo-ei atrasadamente, observo as três ruas que fazem deste sótão, encruzilhada.

Alfredo, cigano-mor voltou a sua carrinha; duas mulheres de longas saias e de ancas à quarto crescente improvisam feijoada; todos os filhos casaram e continuam a temer sapos. Tiveram por uns anos paredes em casa abandonada no cimo da rua que, sem telhado, era mansão de veraneio, fizeram crescer salgueiros de longuíssimos cabelos que escondiam o som das espingardas aquando das zaragatas familiares. Um dos seus vizinhos, não cigano e dono de um admirável jardim amuralhado, continua a recolher cães e gatos – mais de metade da reforma, diz-me. Que alimentar tão farta prol não será de fácil contabilidade. O velho de chapéu e olhos arregalados que ninguém conhece ainda vive. O homem de quem nenhuma viva-alma sabe, crê a todos conhecer. Tomamos um café uma vez. Má de caras podia conhecê-lo e não me recordar porém cinco minutos bastaram para se fazer saber que nem eu o conhecia nem ele a mim. Em boa verdade não conhecíamos ninguém. Ainda esta vivo – penso quando ao avistá-lo a curta distância troco de passeio.

Olhos de pombo. Ou de gaivota, sim de gaivota, daquelas que se atiram contra tubos de queda ou clarabóias. Excessivamente trágico. Imagino que tenha casa, talvez televisão, algo que à noite lhe recorde mais rostos do que os anónimos da cidade. Compreendo. Gente que não se conhece e se vê a vida inteira através do écran. Acontece-me com o Cavaco e com o Júlio Isidro. Da mesma forma como, até ao fim da infância, chamava àquele homem de óculos redondos abaixado junto a um porco, tio João. Até ao dia em que meu pai me revelou o triste facto de, o tio João, não sendo português e estando há muito morto, ser, na realidade, o Lennon, que ele achou graça em colocar no álbum de fotografias da família, juntamente com a Marilyn.

Fazendo-me saber que sim, que a miopia, de que ambos padecemos, não é mal feitura ocular antes uma forma selectiva de olhar.

retratos

A terra continua a ser redonda, alguém me diz. Muito embora tenhas morrido há cinco anos e uma hora. Ao meu lado, o retrato de uma mulher jovem envelhece queimada pelo sol que invade este posto de combate. Nunca tinha reparado em como pode a luz envelhecer um rosto retratado. Encontrei-o no sótão. – Um estudo, diz o meu irmão. A mulher, não mulher jovem, só rapariga, é um estudo dimensionalmente reprovável. A mão esquerda toca a direita. Desproporcional. Como o monstro que se recolhe e se revela em cada um de nós. Talvez o meu irmão estivesse certo e a mão seja apenas o relance mais real dessa realidade silenciosa que a todos consome. Noutro, à minha frente, um homem de olhos fechados é pintado de perfil – outro estudo – a mão esquerda vertiginosamente grande assim como os pés apoiados na trave de madeira de um banco. Tem as costas rígidas, o peito perfeitamente simétrico e estou certa que o rosto, por ter fechados os olhos, não envelhecerá. Não gosto de pintura e não tenho especial devoção por pintores, facto para o qual a minha infância terá contribuído. Mas gosto, pelo erro, de retratos-estudo. Recordam-me um livro. Duplamente. Um livro abstracto em que nas falhas podemos imaginar o trajecto dos erros que o passado imprime na mão que, ao tentar chegar ao perfeito, derrapa. Como a verdade. Em segundo plano, eu própria e o meu primeiro livro. Vermelho como as mãos da professora primária e com o sugestivo título “foge do erro”. Sem metáfora foi, naturalmente, o primeiro que rasguei.
“Foge do erro” é uma voz estilhaçada que nasceu com três rins, que se viu necessariamente obrigada, a ver livre de dois e que, imagino, viva saudavelmente os seus cabelos brancos, agora, com um solitário rim. Havia algo de solitário no rosto dessa mulher que odiei. Um cheiro a suor e a um esforço que previam o futuro macilento de quem passa, todos os dias, o cartão pelas máquinas para seguir viagem. Não sei quantos ensinou a ler mas eu, eu sempre me meti à frente do erro.
Ontem refiz esta casa. Faço-o, quase todos os anos, vinte e quatro horas antes da tua morte. É espantosa a quantidade de papel que um louco pode suster em gavetas que já não abrem. Esta casa sou eu e eu sou um estudo envelhecido pelo sol. O mesmo seria dizer que me fazes falta, mas seria errado. A terra continua redonda e a girar segundo me anunciam. As portas continuam destituídas da sua funcionalidade e os vidros das janelas partidos. As flores de inverno não abandonaram o meu tecto. Há um jardim de Novembro suspenso sobre o meu corpo em cada quarto que durmo. Nunca foste um erro. Uma improbabilidade não é um erro, mas em boa verdade, mesmo que o tivesses sido eu não saberia dizê-lo. Nunca haverá retratos meus. E nenhum livro meu terá vermelha capa.